O que está por trás da decisão de El Salvador em aceitar o bitcoin como moeda legal?

A medida, anunciada sob um verniz de tecnologia e liberdade financeira, tem implicações econômicas e políticas importantes para o pequeno país da América Central

Por Thiago Cesar  /  11 de junho de 2021
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Em uma decisão inédita no mundo, o Congresso de El Salvador aprovou o uso do bitcoin como moeda de curso legal no país. Os deputados que votaram a favor da nova medida, chamada de “Lei Bitcoin”, contam com o apoio do presidente Nayib Bukele, que comemorou a decisão, dando à novidade um viés tecnológico e mantendo a narrativa da liberdade financeira.

Na superfície, a nova regulamentação é quase um manifesto libertário, ao permitir que qualquer pessoa efetue transações com bitcoin. Até mesmo o pagamento de tributos e taxas administrativas poderá ser feito por meio da criptomoeda. A legislação, que é simples e direta, só coloca como ressalva para a recusa do BTC a ausência de condições tecnológicas para aceitá-lo como meio de pagamento.

Vale destacar que o bitcoin já vinha sendo utilizado naquele país, mesmo que de modo informal, por salvadorenhos que recebem remessas de parentes no exterior. O pequeno país da América Central enfrenta várias questões relacionadas ao narcotráfico, como pobreza e violência. Assim, o recebimento de ajuda de familiares em bitcoin é considerado pela população como uma forma barata e segura de fugir das taxas praticadas pelos bancos.

Mas isso é o que está na superfície. Se nos aprofundarmos um pouco mais, veremos que existem várias razões geoeconômicas e políticas por trás desta decisão.

Desafio ao padrão-dólar

El Salvador não possui uma moeda própria desde 2001, tendo adotado o dólar americano em sua economia. Como o país não é emissor da própria moeda, fica refém dos bancos americanos, que atuam como intermediários em todas as transações internacionais. Podemos dizer, portanto, que os Estados Unidos são emissores da moeda oficial salvadorenha, o que provoca diversos problemas para o fluxo internacional de capitais do país.

Mas, como desafiar o padrão-dólar, que pode ser visto como barreira à liberdade de capitais do país, sem se indispor com os Estados Unidos, FMI e agências reguladoras globais? Ao analisar a decisão do país centro-americano, podemos perceber que essa foi uma saída inteligente e até mesmo diplomática. Afinal, ao transformar o bitcoin em moeda de curso legal, o governo salvadorenho está permitindo que o comércio bilateral, transferências internacionais e arranjos econômicos saiam da esfera de influência do dólar sob um contexto de inovação tecnológica, sem se caracterizar como uma afronta ao legado financeiro dolarizado.

el salvador
Dessa forma, ao olhar mais profundamente para o que está acontecendo em El Salvador, fica muito claro que esse é mais um episódio derivado da famosa “Armadilha de Tucídides”. Para quem não conhece, o termo foi descrito pelo professor de Harvard, Graham T. Alisson, para designar o cenário no qual “a expansão de um poder emergente é percebida com temor por uma potência dominante, levando-as ao conflito”. Na China, o poder emergente está desafiando o padrão-Dólar diretamente com seu Yuan Digital. El Salvador, por outro lado, não pode comprar briga tão grande, mas quer se beneficiar de um sistema financeiro paralelo.

Em outras palavras, ao invés de desafiar os Estados Unidos criando uma nova moeda oficial alheia ao sistema financeiro que controla tudo o que entra e sai de El Salvador, o país encontrou uma saída interessante, regulamentando o uso do bitcoin, uma tecnologia aberta, neutra e já existente desde 2009.

Em 2003, tivemos o histórico episódio do Iraque, de Saddam Hussein anunciando que venderia petróleo por euros, não mais por dólares. Há quem diga que isso foi fator contribuinte para a subsequente invasão americana ao país. Nas palavras de Carl von Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”, e o conflito, que teve vitória americana, resultou na retomada do comércio do petróleo em dólares. Se lutar em outro continente não foi um problema para a maior potência mundial, persuadir El Salvador, nação quase vizinha, seria mais fácil ainda.

Mais recentemente, além da China e seu yuan digital, outros países de grande porte, como a Rússia e o Irã, também estão desafiando esse padrão-dólar – porém, de maneira mais aberta. O equilíbrio de poder é diferente quando se trata de um conflito entre os EUA e os países mencionados, alguns com capacidade nuclear. El Salvador, por outro lado, precisou ter mais cuidado, de forma a evitar qualquer tipo de conflito ou intervenção externa. O caminho não poderia ser o da insubordinação, mas sim o da inovação.

El Salvador poderá ser minerador da “própria” moeda

O mais curioso é que, com a decisão de tornar o bitcoin uma moeda legal, o país poderá emiti-la oficialmente. Nayib Bukele postou, no Twitter oficial da presidência, estar criando um plano, junto à estatal de energia, para que essa empresa (que gera energia geotérmica) faça mineração de bitcoin.

Ou seja, a empresa estatal vai produzir bitcoin, assumindo, de certa forma, o papel de Banco Central dos bitcoins de El Salvador. Isso se deve ao fato do bitcoin ser uma rede de livre entrada: todo agente capaz de minerá-lo pode fazê-lo, sob as regras já estabelecidas pelo protocolo.

Então, apesar da questão da liberdade financeira e do viés tecnológico – que certamente existem, claro – a decisão de adotar bitcoin como moeda oficial deve ser enxergada sob as perspectivas de políticas externa e macroeconômicas do país. Afinal, que culpa tem a pequena nação centro americana, com menos de 6 milhões de habitantes, em aderir ao futuro das criptomoedas? Dando certo ou não, certamente foi um ótimo movimento no xadrez da política internacional.


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